terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A LUTA DO ACAMPAMENTO ENCRUZILHADA NATALINO-(Da Página do MST)

A organização do acampamento foi uma ação social planejada e estudada meses antes de acontecer. No início voltou-se para a articulação com os agricultores que haviam sido impedidos pelas forças armadas de entrar nas fazendas Macali e Brilhante e os remanescentes da reserva indígena, que não haviam conseguido comprar terras. 

A localização geográfica foi importante, para maior visibilidade pública do acampamento. Sendo escolhida de modo estratégico, já que a Encruzilhada Natalino está localizada num entroncamento rodoviário onde circulam ônibus e veículos, em direção às quatro maiores cidades da região (Passo Fundo, Sarandi, Carazinho e Ronda Alta), que liga o Rio Grande do Sul à Santa Catarina e se encontrava próxima de vários assentamentos de trabalhadores Sem Terra, como o assentamento Macali. 

Este foi o primeiro acampamento em que as barracas de lona da famílias acampadas foram instaladas na margem da estrada. Até aquele momento os acampamentos eram montados em fazendas ou estradas, distantes dos centros urbanos e de difícil acesso.

Após uma organização provisória, entre dezembro de 1980 e fevereiro de 1981, o acampamento evoluiu para uma organização social estruturada. Entre abril e julho, do mesmo ano, os camponeses e seus apoiadores criaram processos decisórios coletivos, com diversas instâncias de consulta, bem como, realizaram atividades de formação, criando uma identidade coletiva entre os acampados.

Aos poucos, criou-se uma ampla rede de apoio regional a favor do acampamento, formada pelas igrejas Católica e Luterana, sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, comissões de direitos humanos, políticos de partidos de oposição ao regime militar, universitários e outras entidades da sociedade civil. Essas entidades organizavam campanhas de doação de alimento e faziam a defesa dos acampados junto à sociedade local.

A estratégia de mobilização dos Sem Terra combinava atos de protesto com reuniões de negociação junto ao governo. Como medidas de pressão, foram realizadas aproximadamente 23 manifestações públicas e 18 visitas ao governo estadual, Assembleia Legislativa e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Porto Alegre.

Uma das primeiras demonstrações de força, por parte dos Sem Terra, ocorreu em 25 de julho de 1981, em um ato público com mais de quinze mil pessoas, noticiado pela imprensa de Porto Alegre como “a maior manifestação realizada por trabalhadores rurais na história do Rio Grande do Sul”. Na ocasião, o bispo Dom Tomás Balduíno comparou a luta do Acampamento Natalino às greves no ABC paulista, realizadas pelo sindicato dos metalúrgicos entre 1978 e 1980.

O governo militar e a lei de segurança nacional tornaram a atuação política dos camponeses “clandestina”, o que não impediu os trabalhadores Sem Terra de desafiar a ditadura militar e recolocar a Reforma Agrária na pauta social e política brasileira.

A repressão militar

O tamanho do acampamento Encruzilhada Natalino, com aproximadamente 600 famílias, uma média de três mil pessoas, e a manifestação que reuniu quinze mil trabalhadores rurais e apoiadores, demonstraram a força política do movimento e fizeram ligar o “sinal vermelho” em Brasília. 

Após a massiva mobilização, constatando que o governo estadual era incapaz de resolver o “problema”, a ditadura interviu militarmente no acampamento. Foram praticados ataques contra os Sem Terra no período entre julho de 1981 e março de 1982. De 30 de julho a 31 de agosto de 1981 o local foi considerado “área de segurança nacional”.

Durante este período, a intervenção e repressão no acampamento foi comandada pelo Major do Exército Brasileiro, Sebastião Rodrigues Moura, conhecido como “Coronel Curió”, considerado um dos principais especialistas em contra-insurgência no país, “famoso” por sua atuação contra a Guerrilha do Araguaia nas décadas de 1960 e 1970 (em razão da qual foi denunciado por tortura pelo Ministério Público Federal) e por ter “pacificado” a Serra Pelada, no início de 1980.

O objetivo da repressão militar era “eliminar” o acampamento. Quando o acampamento foi declarado área de segurança nacional, o exército montou barracas, no lado oposto ao do acampamento e levantou barreiras para isolar o acesso ao local, transformando o mesmo num grande campo de concentração. 

A autonomia e a organização interna dos acampados ficou comprometida. Ninguém entrava ou saía do acampamento sem autorização dos militares e mais nenhuma família poderia integrar o local. As pessoas eram retidas por horas nas barreiras e identificadas pelo serviço secreto, que também impedia a entrada de doações de alimentos e roupas, vindas da rede de apoio dos acampados. Foi proibida a realização de qualquer tipo de reunião entre os acampados e os coordenadores do acampamento passaram a ser perseguidos e ameaçados. 

Como estratégia de desmobilização e cooptação, o Exército montou uma central de distribuição de alimentos da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), pela qual passou a controlar a distribuição de alimentos aos acampados e utilizá-la como forma de pressão e controle dos mesmos. Espalhando promessas assistencialistas e fazendo subornos, “Curió” tentava convencer os Sem Terra a aceitar terras em projetos de colonização do governo federal na Bahia, Mato Grosso, Acre ou Roraima. 

Mesmo duramente sufocada, a organização política dos acampados e seus apoiadores, entre eles a Comissão Pastoral da Terra (CPT), faziam contrainformação, divulgando notícias e dossiês, com críticas ao projeto do governo e informações sobre as dificuldades dos agricultores assentados nas regiões, oferecidas pelos militares. 

O Coronel foi derrotado, pois os acampados não quiseram abandonar o RS e não aceitaram as terras em outros Estados. Isso provocou o aumento da repressão contra o movimento. Os agentes federais passaram a ameaçar as famílias de expulsão do acampamento e enquadramento por crime contra a segurança nacional.

O ápice da repressão na Encruzilhada Natalino ocorreu em 10 de agosto de 1981, quando as visitas controladas foram proibidas e os homens impedidos de sair do local, transformando o local em uma prisão. Somente as mulheres podiam sair sob a condição de informar onde iriam e o horário que voltariam, tendo como pena não poder mais retornar. 

Nesse contexto, o papel das mulheres foi fundamental na resistência do acampamento. Com sua atitude firme e decidida, e os filhos nos braços postavam-se como escudos humanos frente ao exército e a polícia militar, fazendo com que os soldados recuassem nos ataques contra os Sem Terra. As camponesas foram protagonistas na retomada da luta pela reforma agrária na ditadura militar.

Os interventores marcaram o prazo final para adesão dos acampados aos projetos de colonização para 31 de agosto de 1981, quando se retirariam do acampamento, com todo e qualquer tipo de apoio governamental (como alimentação) e a ameaça de que não assentaria os que permanecessem.

A reação dos Sem Terra não demorou. Em 21 de agosto de 1981, o cerco do exército seria derrubado por um salvo-conduto, obtido pelo Movimento de Justiça e Direito Humanos. Ele permitiu que 35 pessoas visitassem os acampados. A partir disso, o acampamento conseguiu romper o isolamento político e a rede de apoio da sociedade civil foi rearticulada, organizando manifestações de solidariedades às famílias acampadas do Natalino. Finalmente, em 31 de agosto de 1981, o Coronel Curió, juntamente com o exército, retirou-se do acampamento, derrotado. Encerrou-se assim o longo período de intervenção militar federal na Encruzilhada Natalino. 

Porém, a partir desse momento as ações de repressão ao acampamento passaram a ser comandadas pelo governo estadual, que retomou a responsabilidade sobre o local. Em outubro do mesmo ano, os acampados voltaram a ser reprimidos, pela Brigada Militar que reforçou o efetivo, impediu novamente a entrada de alimentos, manteve a intimidação das famílias, contaminou as fontes de água com fezes de animais e atacou os acampados, deixando cinco agricultores gravemente feridos.

Da resistência, a reforma agrária

A partir da luta dos Sem Terra, o Acampamento Encruzilhada Natalino obteve repercussão nacional e internacional, porém não conquistou a esperada Reforma Agrária. Os trabalhadores resistiriam à repressão militar federal e estadual e a precariedade das condições de vida. Sobreviveram ao campo de concentração.

A solução para o impasse foi anunciada na 5ª Romaria da Terra, em 23 de fevereiro de 1982. A igreja católica adquiriria uma área de 108 hectares em Ronda Alta. Ali seria montado um abrigo provisório para as famílias, coroando a resistência de 208 dias à repressão militar no acampamento com uma vitória. 

Em 12 de março de 1982, as 207 famílias que resistiram no Acampamento Encruzilhada Natalino foram transferidas para Nova Ronda Alta, onde reagruparam forças para seguir lutando pelo assentamento em terras do Rio Grande do Sul e por reforma agrária.

Em setembro de 1983 o governo do Rio Grande do Sul desapropriou cerca de 1.870 hectares de terras nos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões e Ronda Alta. Ali as famílias do antigo Acampamento Natalino foram assentadas. Após mais de mil dias de resistência e luta, os Sem Terra conquistaram um lote de terra para produzir e alimentar suas famílias.

O papel da igreja

O setor progressista da Igreja Católica, com base na teologia da libertação, teve papel crucial na organização, formação dos acampados e defesa do acampamento. A organização em vários grupos coletivos espelhou-se na experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e contou com o apoio de religiosos e religiosas e da CPT. 

A coordenação era formada por um conselho de líderes eleitos pelos acampados, que organizava as equipes de trabalho. Era uma experiência de democracia participativa e direta, que estimulava o engajamento de todos e fortalecia a organização dos Sem Terra no acampamento. Esse processo coletivo foi importante para a manutenção das famílias no acampamento e a proteção contra as tentativas de cooptação e a repressão da ditadura. O padre Arnildo Fritzen, de Ronda Alta, ficou conhecido como o líder espiritual do acampamento. Um grupo de religiosas também foi morar com os Sem Terra para dar apoio aos acampados. Vários bispos, como Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduíno, fundadores da CPT, tiveram papel fundamental na defesa e apoio da luta pela terra na Encruzilhada Natalino.

Histórico do Acampamento Encruzilhada Natalino

1964-1970 – Golpe militar instaura uma ditadura no Brasil (1964). Implantação e consolidação do monocultivo da soja no RS, pela ditadura e empresas estrangeiras. 

1970 – Endividamento e êxodo rural em massa dos pequenos agricultores: em trinta anos (1950-1980), 30 milhões de pessoas foram expulsos do campo no Brasil.

1978 – Milhares de agricultores são expulsos da reserva indígena em Nonoai pelos Kaingangs

1979 - Aprovação da Lei de Anistia. Criação da rede de apoio aos agricultores e assembleias de agricultores em Ronda Alta, organizada pelo Padre Arnildo Fritzen. 

- Ocupação da Fazenda Macali, no dia 07 de setembro: primeira ocupação de terras pela reforma agrária, realizada por um movimento social durante a ditadura militar no Rio Grande do Sul.

- Ocupação da Fazenda Brilhante, de 1.618 hectares, vizinha da Macali, ambas próximas da Encruzilhada Natalino.

1980 – Em 08 de dezembro é montada a primeira barraca no acampamento da Encruzilhada Natalino, armada por Natálio.

1981 – Inicia-se o processo de organização interna do acampamento, que passa a ter mais de 500 famílias no mês de maio, reunindo aproximadamente duas mil pessoas.

- 30 de julho a 31 de agosto: acampamento é decretado área de segurança nacional, sofre intervenção militar comandada pelo Coronel Curió.

1982 – Romaria da Terra no acampamento e mudança para Nova Ronda Alta.

1983 – Assentamento definitivo das famílias acampadas da Encruzilhada Natalino.

1984 – Fundação do MST.

1985 – Ocupação da Fazenda Annoni, há alguns quilômetros da Encruzilhada Natalino. Fim da ditadura militar.

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